terça-feira, 19 de julho de 2011

Oração do meio-dia

Esse é o último texto antes da felicidade. Um pouco após do meio-dia da minha vida, espero que a brisa da tarde carregue meu olhar para longe. Encaro a janela como a saída desse filme. Não me venha dizer que as coisas melhoram, que algo está aí para fazer valer a pena... palavras me lembram do tempo em que ainda faziam sentido. Ainda fazia sentido chorar. Ainda fazia sentido ouvir seu coração me beijar pelo canto dos seus olhos.

Será isto o que existe guardado para mim? A reflexão sentida nunca fez parte do meu repertório. Então por que insistir nesta ode ao impossível? Por que procurar, acima ou abaixo do que sinto, a transcendente resposta? Nem flertar com o impulso é permitido. Isto não ajuda. O cordão umbilical dessa tão amada mãe freia meu vôo. É isto que quero e, no entanto...

Agarro-me ao sedutor amor à dor, repetindo palavras sem cessar. Mas existe uma coisa que impende – sou quem do outro lado clama por fim.

Urge o tempo dessa tarde falecida.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Lamento

É rapto. Ausência sentida?
De todos os poros
Por todos os pelos
Pelo meio do peito
É lapso. Transcorre o tempo
É nulo o sentimento.
Rubro, pulsa em tormento
Volta num lamento
A quem preocupar?
Não aos olhos,
Que se ocupam de vagar.
Não se encontra ninguém
Para responder de dentro.
Lá dentro.
Pulsa, rubro, sentimento
Lateja em tormento?
Corrói o tempo
Esganiçado lamento.
Emudecem os olhos,
De que lugar
Volto a enxergar?
Preocupa-te em se ocupar
Do tempo a restar.

sábado, 19 de junho de 2010

Metades



Quando terminou de ler o livro que contava a história de uma súbita transformação, não conseguiu entender de que bicho se tratava, apenas supôs. Deveria ser algum inseto de aspecto repugnante; claro, o livro mencionara algo... não se lembrava.

Na verdade, em muitos casos, tropeços e equívocos são causados pelas traduções, pensou. Mas seria este o caso? Tratou de conferir e foi procurar alguma informação. Vasculhou em enciclopédias, revistas, foi até aos sebos, mas se rendeu ao desamparado esforço de procurar na grande rede.

Pesquisou e chegou à conclusão de que era uma barata. Por quê? Talvez, um incômodo, um medo histórico e latente, quem sabe... de fato, se sentia desconfortável com a idéia absurda e sem explicação da súbita transformação em um inseto repugnante, uma barata.

Uma barata! Quanta repulsa sentia e pensava em todas as vezes em que se deparou com uma. Todas as vezes em que imaginou aquele inseto e seu bater de asas desgovernado. Na rapidez de suas patas, quando em desesperada perseguição. Como era repulsivo!

Voltou a pensar na história, tentando perceber o incômodo que lhe acometia. Era apenas uma história. Um homem acordando em um dia normal metamorfoseado numa barata. Mas decidido a seguir com seu dia, como se fosse “um dia normal”. Será que não se deu conta do que lhe ocorrera? Não percebeu o absurdo que era aquilo?

Não, isso não é possível! Não tanto pela metamorfose em si, trata-se da riqueza da técnica em construir histórias fantásticas, é parte da criatividade do autor. Mas, transformar-se em uma barata e tentar seguir com a rotina, isso é inconcebível!

No entanto, desconcertantemente suportável, talvez.

Teve a sensação de que algo o incomodava em seu ventre. Um comichão rotineiro que ganhava ares de novidade. Teve que olhar para seu corpo e foi inevitável pensar como seria se tivesse todas aquelas perninhas se mexendo desordenadamente.

Era inevitável. Mas, ao mesmo tempo, aquela idéia o angustiava, como se o café com leite fermentado em seu estômago pedisse caminho para retornar à sua boca.

Foi à cozinha para respirar e se certificar que tudo estava em ordem. Bebeu um copo de água, ponderou sobre todos aqueles cantos escuros e resolveu que deveria limpar melhor aquela cozinha. Sabia que todo o tempo de sua negligência poderia ter resultado ali. Um resultado que, a principio, nunca o havia incomodado, mas que agora era atual. Resolveu que varrer com os olhos não seria suficiente. Munido de um fósforo aceso, se pôs à luta.

Ao término do escrutínio, não experimentou alivio. Antes, uma estranha impressão. Era como se estivesse frustrado. Tivera a certeza momentânea de que iria encontrar algo.

Lembrou-se de que havia um buraco de um antigo vazamento em um dos quartos. Deveria estar tapado, mas costumava faltar-lhe o habitual tempo.

Era o quarto em que colocava todos os objetos de pouca utilidade. Realmente, era estranho ao seu conteúdo, havia muito. Não se lembrava que havia colocado ali uma parte dos seus livros que não cabia mais na estante da sala. Também não se lembrava da antiga vitrola que ficou de reaparelhar, mas que ficara para trás, esquecida, bem como seus vinis. Mas lá estavam documentos importantes que davam alguma dor de cabeça para providenciar. Sentiu desprezo por seu desprezo com coisas que faziam parte de sua historia.

Deitou ali mesmo, junto ao pé do armário, como se quisesse dar um tempo para seu arroubo de consciência. Foi quando percebeu por canto de olho que algo se movia. Sobressaltou-se. Pequenas, mas muito rápidas, mais do que quando imaginou, muitas baratas em seu estado larval ou algo parecido. O adulto deveria estar por ali.

Ficou observando, hipnotizado, todo aquele microcosmo, toda a vivacidade dos minúsculos insetos ao alcance de sua visão. Não pareciam tão repugnantes assim. Percebeu que derivavam da pequena reentrância da parede, o buraco que já deveria estar fechado. Observou mais de perto. As baratas procuravam refúgio na escuridão da parede. Uma toca.

Era dia, mas o quarto estava escuro. Fez que ia levantar, quando de dentro saiu uma das grandes, articulando suas asas como se preparasse para o vôo. Seu coração disparou, caindo de seu meio trajeto a levantar. Foi quando sentiu um impulso que rasgou sua consciência e o fez esticar o pé achinelado por sobre aquele desajeitado inseto. Esmagou-o pela metade, mas, mesmo assim, o animal se arrastou em direção ao buraco.

Aquele sangue amarelo sujando seu chão não parecia assim tão amarelo. Metade da barata exalava um cheiro forte, amargo, impregnando seus sentidos, mas a outra metade resistia em direção ao buraco. As antenas vibravam já com menos intensidade. Sentiu um nó no estomago. Percebeu que era uma situação de desigualdade absoluta. Seu tamanho, o tamanho do seu pé; a pequena barata não teve nem a ajuda de seus instintos e muito pouco poderia ter feito.

Metade da barata. Sim e não. Metade morta, metade viva. Metade. Era humano, não barata! Era barata, não humano.

Aqueles pensamentos invadiram sua cabeça como uma martelada. Sentiu uma forte dor e não sabia precisar o lugar. O comichão voltou. Ainda no ventre. Mas a dor era na cabeça, como se dentro da cabeça uma parte de seu cérebro perdesse a consistência. Olhou para a metade da barata resistindo, quase alcançando a desejada escuridão.

Não resistiu àquele sofrimento contido. Aproximou-se da barata e em um só movimento, pegou-a e engoliu. Estava extremamente ansioso. Não mastigou. Sentiu um terrível gosto atravessando seu corpo todo.

Enquanto engolia, fechou os olhos, sentindo o pulsar de seu coração. Era capaz de explodir em seu peito com todos aqueles batimentos. Lembrou-se do livro antes que sentisse todo o peso da escuridão vindo acalmar-lhe.

Abriu os olhos e estava em sua cama. Não possuía a menor idéia de como havia chegado ali. Enquanto ainda recobrava os sentidos, pensou: Eu sou uma barata. Tinha a pele já enrijecida. Seus membros se movimentavam desordenadamente. Era largo como nunca, tinha dificuldade para sair da cama, pois estava de barriga para cima.

Não havia pais, irmãos, nem quem quer que fosse. Não havia aparências a manter e, por isso, empregou o máximo de esforço para pular da cama. Fez um grande barulho ao cair, pois fê-lo desajeitadamente, como que quisesse proteger sua cabeça. Caiu por sobre os cotovelos e joelhos flexionados, o que em outros tempos causaria uma brutal dor. Mas não agora.

Era arrastando-se que se locomovia, ignorando o agora precário estado de suas articulações. Quis comprovar seu real estado. Empreendeu grande esforço para se levantar e alcançar o espelho. Era uma barata, observou no reflexo. Tinha dois braços, duas pernas e as feições de sempre. Mas era uma barata. Era inevitável.

Estava com fome. Foi à cozinha e chafurdou no lixo. Nunca se sentira tão saciado como aquele dia, em que procurou seu alimento em meio aos putrefatos restos. Uma vez mais, estava reconciliado.

Voltou sua atenção para o buraco. Seu lugar era aquele. Não hesitou, vendo que o buraco era muito pequeno diante de sua grande estatura. Municiou-se precariamente de uma marreta e arrebentou toda a parede. Baratas de todos os tipos encontravam-se em cada fresta, cada reentrância da parede. Mas agora, procuravam instintivamente um novo refúgio.

Ficou parado, estático, observando aquele frenesi. Foi quando percebeu que estava de pé. Correu para o armário da cozinha e retornou com uma lata de spray em suas mãos. Despejou seu jato da morte sobre os insetos. Alguns estrebuchavam, outros conseguiam escapar voando ou em espantosa velocidade. Mas os ovos permaneciam. Não era suficiente. Mais uma vez foi à cozinha. Agora era álcool e fósforo. Incinerou tudo que se movimentava ou era marrom.

Cansou-se. Seus joelhos e cotovelos urravam em dor, arroxeados. Observando aquele espetáculo de morte, se deu conta do comichão em seu ventre e teve a certeza de que era a metade da barata que engolira. Sentiu-se cambaleante, o pescoço duro, um suor interminável. Suas mãos tremiam, a dor aumentava. O comichão aumentou e parecia ser necessário arrancar a pele para aplacar suas queixas.

Procurou recobrar o controle sobre si mesmo, mas já era inevitável. Não mais conseguia sustentar o peso do corpo em posição ereta, o comichão era insuportável. Por dentro, sentia como se seus ossos se reorganizassem e tinha já a certeza que o nascimento de novos membros estava em curso.

Recordou-se do livro e percebeu que a metamorfose não era nunca completa; conservava ainda sua consciência. Dando-se conta do extermínio que provocara, teve essa certeza. Era metade. Metade homem, metade barata. A transformação de seu corpo era inevitável. Mas a alma permanecia.

Não teve dúvidas mais. Jogou álcool sobre si mesmo e inflamou-se. Tinha a certeza de que era preciso purificar seu corpo para que restituísse sua completude. Não haveria de viver por metades.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Não

Não. A música transparecia a lucidez perdida. Ou seria apenas um momento que sabia ser passageiro, mas insistia em permanecer? De qualquer forma, não poderia se submeter a mais um esforço, mais um caminho, tantos caminhos...todos iguais, eternamente iguais, diariamente massacrantes.

Um dia de sol ofuscado pela música. Não tão alta. Um dia não tão azul. Um humor pouco ameno. Um gole de café. Algo na garganta. Um bandoneon, um mestre a tocar.

Como são as coisas... o espanhol para ele era como uma senhora velha, lavadeira, um pouco de buço, portuguesa talvez, mas peituda e vaidosa. O espanhol era assim, por toda a volta, comum e mal iluminado. Uma porra de língua enrolada; um resquício de outrora.

Tais quais outros tempos, estava sendo conquistado. O maldito o havia enrolado e, agora, estava a ouvi-lo sublime e inovador. Não era de todo ruim. Sentia-se, por isso, diferente.

Há muito queria fumar um charuto. Sentiu que aquela haveria de ser a ocasião. O médico o havia reprimido, com recomendações para se abster de qualquer outro hábito semelhante. Ah, mas como havia desejado aquele momento!

Era a música, o espanhol e agora o charuto. Cacete! Não se entendia consigo mesmo. Olhava o relógio, a mesma hora de ontem. No copo, formigas. Calor. Algo na garganta, a língua enrolada.

Caiu de súbito por sobre o sofá. Não era a música, mas o estômago. De qualquer forma, o mestre alçava vôo lhe mostrando como deveria ser um verano porteño. Buenos Aires seria a próxima. Aliás, era de buenos aires que precisava, riu-se sozinho.

O embrulho no estômago aumentou. Aquela sra. secretária do médico era por demais formosa. Em seus cabelos negros, lembrou-se de quão negro havia o médico previsto seu destino. Nunca havia fumado. Só queria um trago.

Achou que havia algo não previsto pelo médico que haveria de se-lhe-apresentar. Como em espasmo, antecedendo um acesso de tosse, vomitou sangue espesso, solidificado. Anos e anos de préstimos omissos do SUS, o médico particular não era tão caro assim, bem como seu diagnóstico.

Sorriu. O charuto, haveria de sonhá-lo em outros buenos aires.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Apenas amor


A falta. Parte de nós mesmos, parte integrante de nossos desejos, a falta é o que nos movimenta e nos faz humanos. A falta, essencialmente, organiza os nossos desencontros em objetos concretos(?): gostar, querer, desejar, saudade...

Querer e não consumar é esperar em vão dissipar o desconforto de não ter perto ou não possuir em alcance o brilho de um raio de sol ou o prazer de um sorriso genuíno.

De onde vens, ó, sorriso?
Um olhar a mais denuncia
Um gesto a menos angustia
O calor de um abraço,
Que por mais almejado que seja,
Não conforta
Não comporta
Estremece
Aquiesce
Acrescenta
Se impacienta
É tudo,
Nem tudo ao alcance,
É nada do que se fale
Por linhas retas
Caminhos certeiros
Acerta com o coração
Porque é dele que vem o perdão,
Vislumbrado possível
Na luminosidade ou escondido.
Amor, calor, abraço, cansaço
E, mesmo assim,
De onde vens, ó, sorriso?

Será isso a confissão de um breve sonhador à luz da própria dor? O que seria possível sonhar em meio a tantos obstáculos, senão o descansar do sentimento? Como se a ilusão de um sentimento estático fosse enaltecer nossa condição humana e tudo o que traz esta noção.

Ainda não aprendi a dizer coisas que um coração anseia escutar.

Não há pagamento para uma dívida tão descoberta assim. As garantias estão desconhecidas, o saneamento é constrangedor, a falência é iminente. O coração permanece a palpitar.

As palavras que não encontram caminho através da garganta, tentam encontrar outro. Não se morre de amor. Sim, o que mata é não vivê-lo ou não dizê-lo; é guardar o sentimento, trancafiado em um coração que se mostra impotente.

Sentimos. Sinto, senti e sentirei sempre. Quase desajuste. Apenas, amor.