quinta-feira, 27 de maio de 2010

Apenas amor


A falta. Parte de nós mesmos, parte integrante de nossos desejos, a falta é o que nos movimenta e nos faz humanos. A falta, essencialmente, organiza os nossos desencontros em objetos concretos(?): gostar, querer, desejar, saudade...

Querer e não consumar é esperar em vão dissipar o desconforto de não ter perto ou não possuir em alcance o brilho de um raio de sol ou o prazer de um sorriso genuíno.

De onde vens, ó, sorriso?
Um olhar a mais denuncia
Um gesto a menos angustia
O calor de um abraço,
Que por mais almejado que seja,
Não conforta
Não comporta
Estremece
Aquiesce
Acrescenta
Se impacienta
É tudo,
Nem tudo ao alcance,
É nada do que se fale
Por linhas retas
Caminhos certeiros
Acerta com o coração
Porque é dele que vem o perdão,
Vislumbrado possível
Na luminosidade ou escondido.
Amor, calor, abraço, cansaço
E, mesmo assim,
De onde vens, ó, sorriso?

Será isso a confissão de um breve sonhador à luz da própria dor? O que seria possível sonhar em meio a tantos obstáculos, senão o descansar do sentimento? Como se a ilusão de um sentimento estático fosse enaltecer nossa condição humana e tudo o que traz esta noção.

Ainda não aprendi a dizer coisas que um coração anseia escutar.

Não há pagamento para uma dívida tão descoberta assim. As garantias estão desconhecidas, o saneamento é constrangedor, a falência é iminente. O coração permanece a palpitar.

As palavras que não encontram caminho através da garganta, tentam encontrar outro. Não se morre de amor. Sim, o que mata é não vivê-lo ou não dizê-lo; é guardar o sentimento, trancafiado em um coração que se mostra impotente.

Sentimos. Sinto, senti e sentirei sempre. Quase desajuste. Apenas, amor.

sábado, 22 de maio de 2010

Era tarde


Era tarde. A dor já era habitual. Os olhos fixos, nostálgicos e irrefletidos. O quarto continha o cheiro dele, sobretudo, as roupas. Mas a saudade impregnava o ar, alimentando o vazio da solidão do momento em que percebemos que a dor não irá passar.

Impotência era muito pouco para explicar aquilo que o corroía por dentro. O vazio era tudo. Tudo aquilo pelo que se agarrar para não sentir dor. Mas já era tarde. Tarde demais para chorar.

A vida deveria seguir. Trabalho, esposa, amigos, convenções múltiplas. Ordem, ordem, ordem. Como? Estava imerso em tanto caos, tanta dor e desorganização, àquele momento, acreditava ser impossível.

O problema estava na duração daquele momento. Nunca antes havia experimentado toda a durabilidade da dor. Era como se estivessem testando os limites da fragilidade humana. Não tinha nem como escapar, não chorava mais.

Choramos lágrimas, choramos felicidade, choramos dor, choramos de prazer. Não havia mais recordações desse tempo, distante na memória, longínquo na esperança.

No entanto, havia o quarto e todas aquelas pequenas coisas que dão um falso senso de presença. A ilusão é sádica, nos faz viver e acreditar por um segundo que tudo é possível, apenas para que constatemos que jogamos com a dor.

Era muita dor. Mas haveria de seguir em frente.

No trabalho, um momento de paz. Repetições, palavras conexas de um discurso que não é seu, risos nervosos, café, ordens, diálogos, entendimento e compaixão, risos originais, música, mais repetições e gestos coordenadamente alienados. Uma manhã, mas o remédio para o restante de uma vida de dor.

Os colegas, seu ponto de referência. O trabalho, o ponto de existência. No interior, a morte. Referências da existência pairando sobre a morte. Era seu filho.

Era tarde demais para chorar por seu filho.

Era Flamengo. Não se trata de um time, mas que por ironia era seu maior rival, entretanto, era como se dissesse que estaria disposto a torcer por amor ao filho, por dor, por saudade. Um ponto em que pudesse se agarrar e sonhar, nem que fosse por um momento só. No Flamengo, encontrava seu filho. No Flamengo, seu maior rival, encontrava seu coração.

Era seu coração. Aberto, puro, iludido, desejado, eternizado pela dor da separação. Mas um quarto vazio, impregnado pela dor da saudade.

Seus colegas não compreendiam. Estavam lá, mas não conseguiam dividir, racionalizar, aplacar sua própria dor. Estavam lá e sabiam disso. Amavam-no. Ele não sentia. Estava tomado pela dor.

A dor encontrava vazão na repetição vazia, no bater de teclas nervosas em seis horas de um dia. Era cadenciado, ritmado, aflito, monológico. Univocamente, deveria se estender por sua vida. Mas não era assim.

Na dor da mãe, era forte. Na dor de um pai, era um filho desamparado. No cotidiano de uma vida, era generoso e íntegro. No amor dos colegas, era um irmão.

Mas, o filho era tudo. Era um sonho de uma vida repleta de perfeição, felicidade e amor sem fim.

Era tarde para chorar, sua vida já se tinha ido.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Dia opaco


“Em todo sopro de vento, é como se através da janela conseguíssemos encarar a face do desconhecido e percebendo o feito, houvesse o júbilo reconciliador de nossos medos diante de suas causas. Será que é preciso viver através de um vidro e não se reconhecer no reflexo? Pois, o vento que traz o medo, traz também a verdade sobre a real condição de nossos medos e, talvez, eles mesmos possam morrer no entendimento de que o vento é barulhento e espalhafatoso, mas passa lá por fora, do outro lado do vidro.”

Era noite quando imaginou que o que sairia da boca de Ciro, o personagem principal de sua historia, seria mais ou menos assim. Não estava muito certo que caminho iria seguir, mas sentia necessidade de contar, colocar aquelas coisas para fora. Ciro seria o meio ideal.

Deixou de olhar o vento que reclamava lá fora, acendeu a luz do quarto, puxou debaixo da cama a velha máquina de escrever, que em outros tempos trouxera as fantásticas ilusões com uma vida adulta que nunca existiu. A vida que vivia não tinha nenhum daqueles sabores experimentados nas brincadeiras de criança.

Ciro era uma dessas respostas. A máquina também. Como ignorar que o deslizar suave das teclas do teclado lhe prolongava o dissabor? Tão artificial...

Por isso, a máquina.

Mas, como bem percebeu, testemunhava um dia incomum, um dia desses em que o fígado parece ditar o ritmo de nossa produção. Não estava disposto a colocar para fora. Não era fácil constatar que prenhe de pensamentos, as mãos careciam de precisão e os olhos não se fixavam no papel.

Podia ser apenas o vento batendo contra a janela e uivando por entre as frestas, mas sentia que aquele lamento era semelhante ao seu. Foi quando percebeu que sentia-se incomodado por tocar no desconhecido de si próprio, como se, de alguma maneira, sentisse que algo demasiadamente insistente pesasse em suas mãos, freando aquele impulso inicial com o qual contava para dar cabo a tarefa.

Olhou para o horizonte, através do vidro, como se quisesse distinguir entre duas raízes ao pé de uma árvore adormecida no sopé da montanha, empregando o máximo de atenção possível. Era desnecessário pois sabia que as respostas não estariam tão longe. É uma fuga, pensou.

Cecília não haveria de produzir tantos subterfúgios para se dizer coisas mais simples. Haveria de possuir toda a objetividade que faltava em seu autor. Haveria de ser o contraponto de Ciro, mas que estivesse, de algum modo, interligada organicamente a ele. De modo que, Cecília não está naquela árvore, pensou.

Entretanto, pensar na idéia de que procurava com olhos algo que somente poderia conceber com palavras era algo que intrigava o escritor solitário. Por que identificar tão longe entre duas raízes? E através de um vidro e em um dia chuvoso, denso e opaco?

Haveria de dissipar todas as suas inseguranças literárias no momento em que começasse a escrever. Haveria de ser isso. Produzindo letras, textos, mensagens, haveria de entender o que estava acontecendo dentro de si.

A máquina era pesada, de um verde metálico, e estava um pouco enferrujada, mas possuía este encanto das coisas antigas que parecem ganhar sua própria história. Sua vida sempre se resumiu à mágica que libera ao som das primeiras letras no papel. Os dedos correm e se esforçam para que o registro seja o melhor possível. É impressionante como que o domínio da impressão é comparável à forma que um pandeiro é tocado. Mais para o centro, produz-se um tipo de som encorpado; para as extremidades, o som é assemelhado a um timbre mais agudo. As letras no papel são produzidas quanto mais se tem a certeza de que o momento é aquele. E é engraçado, pois quanto mais pretas elas forem no papel, melhor a noção do quão afetivo foi registrar esta ou aquela palavra. O tamborilar da máquina é a percussão das ideias, com graus mais acentuados em alguns momentos do que em outros, mas expressando sempre as tonalidades diferentes com que o afeto as marca em nossos sentidos.

O texto que começava a ganhar forma não tinha ainda nenhum sentido. Antes, era como um falatório desenfreado – um tanto necessário, é claro – , mas, repetitivo e vazio. As mãos, automáticas, deslizavam num balé coreografado. Já o havia ensaiado em outros tempos, com outras histórias. Personagens que haviam demandado um certo esforço para nascerem.

Com uma grande massa de páginas produzidas, percebeu que aquilo não passava de mimetismo de si mesmo. Talvez estivesse vivendo algum estado automatizado de escrita, alguma forma ainda desconhecida de falar. Não falava nada com aquilo.

Parou, vazio. Já estava parado antes de começar a escrever. Olhou pela janela mais uma vez. As duas raízes permaneciam lá. A chuva escoava pelas folhas de sua copa. Graciosamente. Morriam junto ao solo. Nas duas raízes.

Ainda estava opaco, pouco se podia ver do céu. As nuvens acinzentadas encontravam as montanhas. Tudo era cinza.

Sua máquina era verde. Metálico. Mas o monólogo que escrevia na velha máquina era sempre da mesma cor. Como? Monólogo? Dois personagens? Ciro e Cecília. Duas raízes. Tão longe... e era o que se via no opaco dia.

Uma história que não lhe dizia nada. Uma história tão pessoal e não dizia nada. Uma grande massa de páginas, palavras com o mesmo significado. Um denso retrato de si. Duas raízes ao longe. Dois personagens e uma história opaca. Um dia vazio. Chuva em seu quarto. Desse lado do vidro.

Chuva de letras, pensou.

Não!

Penso, logo letra.