quinta-feira, 3 de junho de 2010

Não

Não. A música transparecia a lucidez perdida. Ou seria apenas um momento que sabia ser passageiro, mas insistia em permanecer? De qualquer forma, não poderia se submeter a mais um esforço, mais um caminho, tantos caminhos...todos iguais, eternamente iguais, diariamente massacrantes.

Um dia de sol ofuscado pela música. Não tão alta. Um dia não tão azul. Um humor pouco ameno. Um gole de café. Algo na garganta. Um bandoneon, um mestre a tocar.

Como são as coisas... o espanhol para ele era como uma senhora velha, lavadeira, um pouco de buço, portuguesa talvez, mas peituda e vaidosa. O espanhol era assim, por toda a volta, comum e mal iluminado. Uma porra de língua enrolada; um resquício de outrora.

Tais quais outros tempos, estava sendo conquistado. O maldito o havia enrolado e, agora, estava a ouvi-lo sublime e inovador. Não era de todo ruim. Sentia-se, por isso, diferente.

Há muito queria fumar um charuto. Sentiu que aquela haveria de ser a ocasião. O médico o havia reprimido, com recomendações para se abster de qualquer outro hábito semelhante. Ah, mas como havia desejado aquele momento!

Era a música, o espanhol e agora o charuto. Cacete! Não se entendia consigo mesmo. Olhava o relógio, a mesma hora de ontem. No copo, formigas. Calor. Algo na garganta, a língua enrolada.

Caiu de súbito por sobre o sofá. Não era a música, mas o estômago. De qualquer forma, o mestre alçava vôo lhe mostrando como deveria ser um verano porteño. Buenos Aires seria a próxima. Aliás, era de buenos aires que precisava, riu-se sozinho.

O embrulho no estômago aumentou. Aquela sra. secretária do médico era por demais formosa. Em seus cabelos negros, lembrou-se de quão negro havia o médico previsto seu destino. Nunca havia fumado. Só queria um trago.

Achou que havia algo não previsto pelo médico que haveria de se-lhe-apresentar. Como em espasmo, antecedendo um acesso de tosse, vomitou sangue espesso, solidificado. Anos e anos de préstimos omissos do SUS, o médico particular não era tão caro assim, bem como seu diagnóstico.

Sorriu. O charuto, haveria de sonhá-lo em outros buenos aires.

Nenhum comentário:

Postar um comentário